sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O amor devora

Os Três Mal-Amados

João Cabral de Melo Neto

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. 
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas",Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O que ela quer da gente é coragem

Foto: https://www.flickr.com/photos/jridgewayphotos

Ainda acho engraçado quando amigos dizem que sou corajosa. Não me acho nem um pouco. Na verdade, diria que sou uma das pessoas menos corajosas que conheço: estudei a vida inteira na mesma escola, morei a vida inteira na mesma casa, tive quase sempre os mesmos amigos, enfim, nunca mudei muito, nem me esforcei pra isso. Além disso, posso citar aqui pelo menos umas 10 pessoas próximas muito mais corajosas: desde a amiga que larga tudo pra passar 1 ano na Ásia, até a que se joga no mundo (mais precisamente na Europa) toda vez que seu coração manda. E eu continuo na minha vidinha classe média brasiliense. Pelo menos consegui fugir do fluxo passar num concurso - casar - ter filhos, o que já pode ser considerado um grande passo de coragem pra quem mora aqui.

Meu único ato de coragem nos últimos tempos foi aprender a dizer mais "sim"  para a vida, antes de reagir com aquele "não" iminente. E foi dizendo sim que eu descobri que a vida é muito mais simples do que eu imaginava. Descobri que viajar sozinha para um lugar desconhecido com língua desconhecida não é nenhum bicho de sete cabeças; que morar sozinha tem um monte de contratempos, mas uma liberdade incomparável; que por mais que nosso coração esteja em um lugar, é bom a gente se jogar em novas aventuras, a vida sem frio na barriga não tem graça; que sorrir, conversar e se permitir conhecer pessoas que não tem absolutamente nada a ver com a gente é extremamente gratificante e enriquecedor; que experimentar uma comida nova é bom pra caramba; que ir a lugares estranhos e diferentes pode ser muito divertido. Mas talvez o que eu melhor tenha aprendido é que dizer sim para as nossas vontades é a melhor coisa que existe. Parar de viver e de querer viver a vida do outro é mais do que coragem, é crescimento, maturidade.

Eu resolvi, então, dizer sim para a minha vida e assumir as consequências das minhas escolhas. Parar de pesar demais os contras e apostar nos prós. E, olha só, descobri que na maioria das vezes são os prós que contam mesmo. Mas quando os contras pesam mais, a gente muda de novo, não tem nada de errado nisso. Ninguém fica me apontando na rua quando eu mudo de ideia, nem quando eu desisto de alguma coisa. Por outro lado, quem gosta de mim fica extremamente feliz quando vê meus projetos dando certo, e isso é muito gratificante.

E é isso. 2013 termina de viagem feita, alma lavada, casa nova, emprego novo, 18 km de corrida completados e a vida muito melhor do que eu podia imaginar. Com muito mais segurança de quem eu sou e do que eu quero pra mim, com muito mais vontade de escrever o roteiro da minha vida, com a certeza de que posso corrigi-lo ao longo do caminho, quando eu bem entender.


Coragem? Acho que não, só resolvi tomar as rédeas da minha vida. Afinal, ela é minha, não preciso que ninguém a conduza.