Lembro bem do dia que o conheci. Taça de champagne na mão, a toalha vermelha enorme estendida na grama, o balde amarelo com gelo e garrafas. Aquele sorriso cativante e a simpatia que ele duvidava que tinha. "Pode de servir, gata". Não recordo se conversamos muito ou pouco, mas saímos de braços dados e ele ainda ensaiou uma briga com uns caras que estavam mexendo comigo no caminho para o carro. Ele faria isso nos próximos dois anos que esteve na minha vida.
Aquele sorriso fácil entrou nos meus dias de forma inexplicável. Em pouco tempo eram várias mensagens todos os dias. Piadas, reclamações, desabafos. Ajuda na mudança, companhia no shopping, socorro culinário quando a geladeira estava vazia. Vamos malhar, vamos correr, vamos fazer SUP, vamos tomar sol, vamos comer, vamos beber, vamos sair, vamos, vamos, vamos.
Dois anos depois, após tosse insistente e pneumonia teimosa, recebo a notícia inesperada: ele não mais tinha consciência. Estava dormindo profundamente e lutando para viver. As causas eram misteriosas, mas no fundo eu sabia. Sabia desde que percebi que sua saúde andava debilitada e seu corpo sem energia, sabia desde que ele entrou naquele hospital e não conseguia mais sair. Sabia, mas queria que fosse mentira.
Em apenas quatro meses aquela presença tão intensa se desfez. Eu perdi o sorriso que enchia minha casa quando chegava e me arrancava uma gargalhada mesmo nos momentos mais tensos. Perdi meu ombro amigo, meu braço direito, minha companhia. Perdi sem poder ajudar. Perdi sem ouvir da boca dele como ele se sentia e sem poder dizer que eu estava ali, do lado dele, para o que viesse. Perdi sem dizer que eu iria lutar junto, enfrentar preconceitos, dar minha mão pra ele e encarar esse mundo tão cruel de peito aberto. Perdi sem escutá-lo dizer "não faz drama".
Acabo de ler o perfil do deputado Jean Wyllys na revista Piauí. Nela, Jean conta de um ataque de pânico após saber da morte do menino Alex, 8 anos, que apanhou tanto do pai que teve o fígado dilacerado e morreu. "Esse menino provavelmente passou pelo processo que eu e tantos outros passamos e passarão. De humilhação, xingamento e insulto".
O meu amigo imediatamente me veio à cabeça. Quantas vezes ele me contou dos preconceitos que sofria na escola, quantas vezes conversamos sobre o receio de contar para a família, quantas vezes eu percebi nele o pânico de ser rejeitado pelas pessoas que ele amava. Quantas vezes conversamos sobre tudo e, mesmo assim, ele teve medo que eu soubesse o que o afligia.
No perfil do deputado, a jornalista Adriana Abujamra descreve diálogos com Wyllys nos quais ele denuncia os absurdos da influência da bancada evangélica no Congresso: estatuto da família, generofobia, intolerância, entre outros. Sobre um diálogo de Adriana com o deputado Jair Bolsonaro, eu custo a acreditar nas palavras que leio, mesmo vindas dele. Segundo o deputado, ele não é contra os homossexuais, contanto que permaneçam escondidos e sem fazer alarde. E finaliza dizendo que "a minoria gay no Brasil agora se julga semideus!".
Só penso no que cada palavra dessas causa nas pessoas. Quando o menino Alex morreu porque gostava de lavar louça e dançar, ele não morreu só. Muitos meninos que gostam de bonecas e muitas outras meninas que gostam de jogar bola morreram junto, de fato ou simbolicamente. Cada ofensa, grito de ódio, humilhação é uma ferida que se abre no corpo e na pele de quem enfrenta preconceito todos os dias, em qualquer instância da vida. Cada surra motivada por homofobia, é um golpe na autoestima de gays, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros, bissexuais.
Quando meu amigo morreu, ele também não morreu só. Ele levou um pedaço do nosso coração, dos amigos e da família. Ele carregou com ele um estigma, deixou a indignação pela dificuldade que temos em tratar abertamente assuntos tão importantes e a dor pelo medo que ele deve ter sentido calado. Medo de ser excluído, julgado, mal visto, mais do que havia sido até então.
Quando Felicianos, Bolsonaros, Cunhas e seus amigos, com a desculpa de defender a família, influenciam as decisões políticas para continuarem marginalizando LGBTs, eles não estão apenas excluindo essas pessoas. Eles estão matando: por medo, por ignorância, por solidão, por incompreensão, por rejeição.
Aprovar o casamento gay ou permitir a adoção por homossexuais não tem só a ver com uma formalidade e muito menos com religião. O casamento é uma forma de resgate do amor familiar muitas vezes perdido por quem é desprezado por ser visto como diferente. E, aqui, ao contrário da família tradicional defendida por bancadas religiosas, trata-se de uma família não ortodoxa, não engessada. Uma família autêntica, baseada em amor, respeito e vontade, não em preceitos religiosos. Nas palavras de Wyllys, "por mais que a gente vire arrimo de família desde cedo, a nossa vontade, no fundo, é ser amado feito os outros, sem ter que fazer tanto esforço."
Criminalizar a homofobia tem a ver com respeito e tolerância. E também com a permissão de se construir a identidade e autoestima LGBT sem medo, sem vergonha, sem solidão. Tem a ver com liberdade de expressão e com sentimento de aceitação. Todas as vezes que um gay é atacado por ser gay, não é só o Jean Wyllys que tem ataque de pânico. São crianças que têm medo dos colegas de escola, são adolescentes com medo dos pais, são adultos com medo da sociedade. São pessoas criadas com medo de se abrirem e não serem aceitas.
As mortes, em todos esses casos, são incontáveis, reais ou simbólicas. Enquanto houver intolerância, dezenas de crianças e jovens pensarão em se matar por serem "diferentes", milhões de pessoas se trancarão dentro do próprio sofrimento por vergonha.
Meu amigo não precisava ter morrido. Fosse o mundo mais compreensivo, tivessem as pessoas mais amor, professassem menos ódio por aí, aquele sorriso ainda estaria aqui, alegrando meus dias e ajudando pessoas como ele sempre gostou de fazer. Não foi a doença que o matou, foi a intolerância.