Por anos escutei as pessoas reclamarem da passividade do
povo brasileiro. Escândalos atrás de escândalos e não fazemos nada para mudar.
Entram eleições, saem eleições e os mesmos estão no poder. O povo não se
mobiliza. O povo, essa entidade despersonalizada, sem nome, nem endereço. A
geração dos nossos pais, sobreviventes à ditadura, sempre mostrando o quanto
nós, jovens de hoje, somos coniventes com tudo, não nos mobilizamos, não saímos
de frente do computador. Porque na França, no Egito, na Turquia, em Marte, lá
sim eles sabem protestar, lá sim eles exigem seus direitos. Lá, o povo sabe
reclamar.
Pois bem, o povo saiu da internet e foi para as ruas. Por
causa de míseros R$ 0,20 a paciência chegou no limite, esgotou. Sim, o povo
brasileiro, como o francês, aqueles que sabem protestar, resolveu colocar a
cara a tapa. Mas esse mesmo povo, antes passivo e apático, virou bandido.
Aqueles mesmos que acusavam o povo de inerte, agora acusam de baderna. Porque o
povo brasileiro tem que protestar em silêncio, não pode atrapalhar sua volta
pra casa no seu carro automático e com ar condicionado, não pode sujar a rua,
nem quebrar vidros. Na França pode até virar ônibus, eles tem uma causa. Aqui
são só R$ 0,20. E não justifica tudo isso por essa mixaria. Aliás, nem
justifica esse bando de gente que nem transporte público usa, ir fazer protesto
contra o aumento das passagens. Cada um com seus problemas, e o conceito de
democracia é jogado pelo ralo.
Pior ainda, o povo escolheu uma péssima hora para
resolver reagir; estragando a festa brasileira, a tão esperada e venerada Copa
do Mundo no Brasil. Tudo errado, tudo errado. O povo brasileiro deveria mostrar
para os gringos o quanto somos felizes, hospitaleiros e imbecis de acharmos
normal gastar 33 bilhões com uma Copa do mundo e não termos hospitais.
O primeiro absurdo nessa
história toda é jogar a culpa em cima do povo. Quem é esse povo? Esse povo não
sou eu, você, o PM, seus filhos e todos que pagam impostos, elegem os
governantes, são cidadãos? Não somos nós esse povo que não ia às ruas, não
reclamava? E não somos nós esse mesmo povo que está com a paciência esgotada,
que quer ver uma mudança urgente? Então porque essa mania de despersonalizar a
culpa, ao invés de assumi-la? Ao invés de admitir que somos nós que não nos
mobilizamos? Somos nós que aguentamos por anos escândalo atrás de escândalo, corrupção
atrás de corrupção, injustiças, absurdos, abusos, dentre outras coisas. E somos
nós que não fizemos nada para mudar isso. Portanto, não se esconda atrás do
povo brasileiro, pois você é o povo brasileiro e somos todos culpados pelos
governantes que temos, pelos problemas que temos, por essa nossa cultura do
jeitinho que confunde malandragem com esperteza.
Acontece que nós, povo, não
aguentamos mais ter que pagar caro por um transporte público que não funciona;
ter que pagar escola particular e plano de saúde, por o que é público é de
péssima qualidade; ter medo de sair na rua; ter estradas esburacadas e
perigosas, só para citar alguns dos problemas. E somos nós, povo, que estamos
indo para a rua protestar. Não é O POVO brasileiro, despersonalizado, somos
nós, todos nós que pagamos nossos impostos e não vemos retorno, que queremos
morar em um país melhor.
Portanto, não espere um protesto silencioso, ele não vai
acontecer. Quebrar, depredar, estragar não são corretos. Mas ferir, prender
injustamente, perseguir e espancar também não são. Morrer em hospitais, não ter
cadeira nas salas de aula, passar fome, são menos ainda. E se for preciso pagar
um preço para ter um país mais decente, teremos que pagar. Não haverá
manifestação na calçada, que irá parar nos sinais e faixas de pedestre pra você
passar. Você vai chegar atrasado para buscar seu filho, vai ouvir palavrões na
rua, não vai conseguir assistir sua novela. Mas graças a esses baderneiros pode
ser que o seu dinheiro seja melhor aplicado, que você possa deixar o carro em
casa para usar o transporte público, que seu filho posso brincar na rua sem medo.
Então, ou estaciona seu carro na esquina e vai para a rua, ou vai ler uma
revista e não atrapalha quem está lutando por um país melhor para você e sua
família.
Não espere que um trabalhador que fica mais de 8 horas
por dia no trabalho, que pega 2 conduções e leva mais 2 ou 3 horas voltando
para casa, tenha tempo para ir para a rua protestar. Ele tem que ir para casa
dar atenção para o filho pequeno porque não pode pagar ninguém para cuidar ou,
quem sabe, começar uma jornada dupla de trabalho, em casa ou em outro emprego.
Isso se ele tiver alguma ideia do que está acontecendo, se ele tiver uma visão
que o faça enxergar além do que a grande mídia mostra, se ele tiver um nível
educacional e crítico que o permita avaliar as mudanças que estão acontecendo. Mas
eu, você, seu filho, seus amigos, nós que não usamos transportem público, temos
plano de saúde e estudamos nas melhores escolas do país; nós que não levamos nem
meia hora do trabalho até em casa e podemos pagar alguém para ficar com nossos
filhos por mais uma ou duas horas eventualmente; nós que estudamos, lemos,
viajamos, temos acesso a cultura; nós podemos ir juntos às ruas reivindicar
direitos que atingem a todos. Podemos gastar 2 ou 3 horas do nosso dia lutando
por um lugar mais justo, mais digno para se viver. Lembre-se que para nós,
estudar em uma universidade pública foi apenas obrigação para quem teve
condição de ter um ensino privado de qualidade. Mas o filho do seu porteiro,
que usa o transporte público lotado e péssimo para ir a uma faculdade privada e
de qualidade duvidosa, não tem como ir para a rua protestar, porque
provavelmente ele ainda trabalha para pagar a faculdade. Ou seja, obrigação
dobrada para nós, privilegiados da classe média brasileira que ao invés de
ajudarmos só reclamamos.
Por fim, não existe festa brasileira do futebol e cara
bonita para a imprensa lá fora quando se gasta bilhões na construção de estádios
que serão subaproveitados, enquanto a população se ferra. A FIFA é uma das
instituições mais corruptas que existem, isso não é segredo para ninguém.
Juntando isso ao governo brasileiro, historicamente ladrão, temos uma máfia
formada. Então, não me venha falar de festa e sorrisos enquanto nossos
hospitais não tem leito, não tem médicos, não tem medicamentos; enquanto nossas
escolas não tem cadeiras, não tem professores, não tem merenda; enquanto nosso
transporte público está lotado e sucateado; enquanto nós não pudermos andar nas
ruas sem ter medo de bandido de verdade. Não venha me dizer que toda essa
"baderna" é ruim para a imagem do país lá fora. Ruim para nós é ter
policia batendo em estudante, gente morrendo em hospital por falta de
atendimento, criança sem ter o que comer na escola.
Isso não é briga de partido, não é disputa entre
vermelhos ou azuis, há tempos que essa divisão partidária no Brasil deixou de
ter sentido. Também não é uma greve, não existe uma lista de reivindicações.
Essa é a luta de 8 milhões de brasileiros por um país coerente, menos corrupto,
mais preocupado com o bem estar da população. O Brasil resolveu mostrar a cara,
dizer a que veio, mostrar ao mundo que cansamos do pão e do circo. A gente quer
justiça. Não adianta "deixar para protestar nas urnas", estamos
cansados de saber que nossas opções estão sempre entre o sujo e o mal lavado.
Só nos resta ir para a rua, para a janela, para o Facebook, tanto faz, mas
lutar com as armas que cada um tem. Lutar para que nossos filhos tenham orgulho
de dizer que são brasileiros não por causa de uma seleção de futebol, mas
porque vivem em um país que oferece condições dignas para sua população viver.