sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O amor devora

Os Três Mal-Amados

João Cabral de Melo Neto

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. 
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas",Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O que ela quer da gente é coragem

Foto: https://www.flickr.com/photos/jridgewayphotos

Ainda acho engraçado quando amigos dizem que sou corajosa. Não me acho nem um pouco. Na verdade, diria que sou uma das pessoas menos corajosas que conheço: estudei a vida inteira na mesma escola, morei a vida inteira na mesma casa, tive quase sempre os mesmos amigos, enfim, nunca mudei muito, nem me esforcei pra isso. Além disso, posso citar aqui pelo menos umas 10 pessoas próximas muito mais corajosas: desde a amiga que larga tudo pra passar 1 ano na Ásia, até a que se joga no mundo (mais precisamente na Europa) toda vez que seu coração manda. E eu continuo na minha vidinha classe média brasiliense. Pelo menos consegui fugir do fluxo passar num concurso - casar - ter filhos, o que já pode ser considerado um grande passo de coragem pra quem mora aqui.

Meu único ato de coragem nos últimos tempos foi aprender a dizer mais "sim"  para a vida, antes de reagir com aquele "não" iminente. E foi dizendo sim que eu descobri que a vida é muito mais simples do que eu imaginava. Descobri que viajar sozinha para um lugar desconhecido com língua desconhecida não é nenhum bicho de sete cabeças; que morar sozinha tem um monte de contratempos, mas uma liberdade incomparável; que por mais que nosso coração esteja em um lugar, é bom a gente se jogar em novas aventuras, a vida sem frio na barriga não tem graça; que sorrir, conversar e se permitir conhecer pessoas que não tem absolutamente nada a ver com a gente é extremamente gratificante e enriquecedor; que experimentar uma comida nova é bom pra caramba; que ir a lugares estranhos e diferentes pode ser muito divertido. Mas talvez o que eu melhor tenha aprendido é que dizer sim para as nossas vontades é a melhor coisa que existe. Parar de viver e de querer viver a vida do outro é mais do que coragem, é crescimento, maturidade.

Eu resolvi, então, dizer sim para a minha vida e assumir as consequências das minhas escolhas. Parar de pesar demais os contras e apostar nos prós. E, olha só, descobri que na maioria das vezes são os prós que contam mesmo. Mas quando os contras pesam mais, a gente muda de novo, não tem nada de errado nisso. Ninguém fica me apontando na rua quando eu mudo de ideia, nem quando eu desisto de alguma coisa. Por outro lado, quem gosta de mim fica extremamente feliz quando vê meus projetos dando certo, e isso é muito gratificante.

E é isso. 2013 termina de viagem feita, alma lavada, casa nova, emprego novo, 18 km de corrida completados e a vida muito melhor do que eu podia imaginar. Com muito mais segurança de quem eu sou e do que eu quero pra mim, com muito mais vontade de escrever o roteiro da minha vida, com a certeza de que posso corrigi-lo ao longo do caminho, quando eu bem entender.


Coragem? Acho que não, só resolvi tomar as rédeas da minha vida. Afinal, ela é minha, não preciso que ninguém a conduza.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

You never know how strong you are

Só temos noção do tamanho da nossa força quando ser forte é a única opção que nos resta.

E você está aprendendo isso da maneira mais dura e sofrida possível. Queria eu viver tudo no seu lugar. Não me importaria em passar por tudo de novo. I've been there before.

Mas o que eu vi nos seus olhos não foi a menina que enxergava até então, foi a mulher linda, forte, poderosa, que eu sempre acreditei que você seria. Você cresceu.

Não é apoio mais que tenho para te oferecer, mas carinho, alento, colo, sorvete, risadas e todo o meu amor. O resto você já tem. Você já tem força, sabedoria, maturidade, amor próprio e muita coragem. E eu, muito orgulho.

<3



terça-feira, 26 de novembro de 2013

Desses sentimentos que a vida transforma pra não levar embora


Foto: https://www.flickr.com/photos/mk_is_here

Ele sempre dizia que amizade entre homem e mulher não existia sem algum interesse. Ela achava bobagem, ciúmes bobos dos seus amigos. Demorou mais de dez anos para aprender que ele tinha razão, mas que ela também não estava errada em acreditar nesse tipo de amizade.

Naquela época, viviam um desses amores adolescentes avassaladores. Mãos dadas na escola, beijo roubado atrás do muro, buquê de flores na sala de aula, poemas e cartas de amor. Dessas paixões que deixam sem ar, fazem a perna tremer e a barriga coçar de tanta borboleta.

Como todo fogo que acende rápido, poderia ter acabado rápido. Mas durou uns bons anos, nos quais eles riram juntos, choraram juntos, brigaram juntos, aprenderam juntos, viveram juntos uma das fases mais importantes de suas vidas. E conseguiram uma cumplicidade tão grande que muitos achavam que eram irmãos e se assustavam quando os viam se beijando.

Enfim, uma hora os caminhos tomaram direções diferentes. Era bom estar junto, mas não era mais suficiente. Talvez, por isso, o carinho que cultivaram ao longo dos anos ficou guardado em algum lugar seguro. Então, por mais que a vida os levasse para outros lugares, outros amores e outras experiëncias, estavam sempre por perto, mesmo que fosse à distância de um toque de telefone. Podiam ficar semanas, meses e até anos sem se ver, mas uma hora ou outra se encontravam, colocavam a conversa em dia, riam e se ofendiam mutuamente como dois bons e velhos amigos.

Um dia, saindo do bar com amigos em comum, ela escutou de uma amiga: "vocês tem tanta conexão, que pena que não deram certo, que pena que todo aquele amor acabou". Ela parou, refletiu e concluiu que, na verdade, o amor não acabou, há quinze anos aquele amor existe, só que de uma forma diferente: mais estável do que a paixão adolescente e mais tolerante do que o amor entre um casal de namorados. Ele se transformou em uma amizade sincera, franca e transparente. Em um carinho enorme, que sobrevive ao tempo e às circunstâncias. Em um cuidado mútuo que se percebe em cada troca de palavras, brincadeiras e convites para uma cerveja.

E dentre todos os amores desfeitos e tantas decepções vividas que ultimamente a deixavam tão desanimada, ela sentiu uma alegria gostosa ao entender que esse foi o primeiro amor de verdade da sua vida e o único que permaneceu. Com ela, esse sentimento ficará guardado em um lugar muito especial para que não se perca também, para que não vire apenas mais uma lembrança em sua vida, mas continue presente, por tempo indefinido.

Foi aí que ela viu que a própria história deles provou o quanto ele estava certo e o quanto ele estava errado em relação a amizade entre homem e mulher. Realmente, essa amizade não existe sem alguma intenção. Mas quando essa intenção se esgota, a única coisa que resta é o carinho, a lealdade e o cuidado entre dois bons amigos que se gostam de graça, pelas risadas que dão juntos, pelos bullyings por mensagem e até pelas brigas e puxões de orelha muitas vezes necessários.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Santa Chuva

Foto: https://www.flickr.com/photos/52214493@N03

Poderia ser mais um domingo qualquer, de um março qualquer, de um ano qualquer. No entanto, dessa vez, enquanto a chuva inundava o país, batia também em seu peito com tanta brutalidade que arrastava pedaços de sentimentos e lembranças. Sentia como se toda aquela água saísse de dentro dele.

Marcelo pegou o celular e, inúmeras vezes, ensaiou apertar aquele número que estava em primeiro na lista há tantos anos. Não tinha coragem. Não aguentava mais aquele limbo, mas sabia que uma ligação só pioraria as coisas. Achou melhor tentar uma mensagem, pelo menos se pouparia de escutar a voz que tanto amava lhe dizer palavras tão duras. Mesmo sabendo que ela conseguia ser ainda mais cruel ao escrever do que ao falar, era mais fácil lidar com tanta mágoa quando as palavras estavam no papel (ou na tela do celular).  “Eu só queria que essa chuva te trouxesse de volta para mim...”. Mandou e se arrependeu imediatamente.

No mesmo instante, começou a se lembrar do dia que a levou ao seu restaurante preferido. Ela estava linda como há muito tempo não a via. O sorriso, os olhos, a alegria, aquele jeito tagarela de quando estava muito feliz ou muito nervosa. Jantaram, riram, conversaram, até que chegou a hora que ele tentava adiar. Começou falando de sentimentos, dúvidas e angústias da vida, gaguejava, confundia as palavras e as ideias. Sua namorada não era boba, entendeu muito bem o que ele tentava dizer: “é outra mulher, não é?”. Não precisou de um sim verbal, o olhar o entregou. Ela pegou sua bolsa, levantou-se calmamente e foi embora.

Naquela noite, não conseguiu dormir. Sentia falta de ar, seu peito pesava. Cochilava e o sorriso dela aparecia em seus sonhos. Acordava e tinha vontade de voltar no tempo e desfazer tudo aquilo. Mas não podia, estava enrolado até o pescoço. Não tivera apenas um caso, prometeu à outra o que ele só podia dar à sua namorada (agora ex). Ela acreditou e agora esperavam um filho. A criança nasceu, mas o relacionamento não durou.


Não sabia de onde vinha tanta água, da rua ou de dentro dele. 

*Esse conto foi escrito para a Oficina de Escrita Literária, do professor Marcelo Spalding. A música escolhida para basear o conto foi Santa Chuva, do Marcelo Camelo.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

And we can learn to love again

Me tiraram dos pés as nuvens sob as quais eu andava. Padeci de amor. Nem mesmo acreditava que havia sido meu um dia. I thought that we were fine (oh we had everything). Fui obrigada a caminhar com meus próprios pés. A levantar da queda, consertar os joelhos machucados, curar o coração doente, levantar a cabeça e seguir em frente. E bem ali na frente encontrei a vida, a MINHA vida, com todas as possibilidades e sonhos que eu poderia viver. Vivi meus sonhos. Vivi pessoas. Vivi momentos. Enchi meus dias de sorrisos. Enchi minhas noites de música. Enchi minha vida de poesia. E tudo graças a minha insistência em ser feliz, e àqueles que preencheram minha vida com o amor que eu precisava.


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Se você vier

Foto: https://www.flickr.com/photos/darkroses/


Olho pela janela esperando algum sinal, será que um dia você vai aparecer? Será que eu ainda verei você chegando por aquela estrada?

Se vier, venha tranquilo. Não precisa chegar cheio de expectativas, planos, convicções. Não, deixe-as para trás. Traga apenas a vontade de ser feliz e um saquinho de borboletas para o meu estômago. Se quiser, traga ainda aquela fraqueza gostosa nas pernas de quem se apaixona.

Não precisa vir a cavalo, nem de carro. Quer saber? Prefiro que venha de bicicleta, assim caminhamos lado a lado, juntos quando quisermos e separados quando precisarmos.

Não precisa me oferecer flores, joias ou promessas. Me ofereça carinho. Me ofereça respeito e compreensão. E não espere de mim devoção, espere admiração.

Nunca vou te prometer amor eterno, nem te dizer que sem você a vida não tem sentido. Minha vida não será incompleta sem você, nem sem cor, nem sem graça. Mas com você ela certamente será melhor, mais prazerosa, mais gostosa.Também não vou dizer que nunca amei antes. Ao contrário, ao som de Cartola te direi que tive sim, outro grande amor antes do seu, mas comparar com o seu amor seria o fim.

Não me procure para dividirmos uma vida juntos, mas para somarmos um na vida do outro. Não me procure para ter uma vida plena de felicidade, pois teremos altos e baixos, brigas, decepções, choros e até vontade de não estar junto mais. Mas te asseguro que o carinho, a paz e a tranqüilidade dos dias comuns falarão mais alto.

Também não te peço que seja para a vida inteira, a vida é longa demais para tranformá-la em expectativa. Que dure apenas o tempo necessário para podermos dizer que sim, demos certo juntos, e guardarmos as lembranças mais doces no peito.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Dos preconceitos

Coisa de mulherzinha.

Coisa de veadinho.

Coisa de menininha.

Coisa de bichinha.

E com coisa de gente ignorante, machista e homofóbica, a gente faz o que?

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Esse dia

Eu nunca vou esquecer o dia em que meu peito doeu como nunca e eu queria explodir. Fiz o menos aconselhável nessas horas: bebi. Sempre tão fraca, aquela vodka bateu com muito mais força no meu sofrimento e fez sangrar, sangrar em lágrimas. A única coisa que eu esperava e implorava mentalmente para você me dar, era um abraço e a possibilidade de colocar minha cabeça no seu peito pra ver se seu coração ainda batia por mim. Você não me escutou. Rejeitou minhas lágrimas e minha dor, virou para o lado e pediu para que eu o deixasse dormir. Isso, mais do que todos os outros episódios infelizes subseqüentes, eu nunca esqueci. E mesmo quando todo o resto sumir da minha memória, isso ainda vai pesar. Como pesou hoje o dia inteiro.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Drummond na vida real

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João traiu Teresa que enganou Raimundo que cansou de Maria que largou Joaquim que sofreu por Lili que viajou para a Europa, casou com um inglês e nunca mais voltou.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O preço que se paga pela omissão



Antes de qualquer coisa quero dizer que sou categoricamente contra a violência, seja de manifestantes seja de policiais. Sou contra o vandalismo, a depredação, as pichações. Elas acabam não apenas custando mais aos cofres públicos, como machucando pessoas inocentes.

Mas após seis dias de protestos não vi um político que fosse dar alguma declaração para tentar resolver o problema. As únicas declarações foram elogiando a atuação infeliz da PM em quase todas as cidades. Diante de tanta omissão, sinceramente, acho que querer calma é pedir demais do povo. Depois que a policia sentou a porrada em todo mundo, pedir que as pessoas fiquem tranquilas esperando os governantes pararem de se borrar na calça e tentem alguma solução é um teste de paciência imenso.

Não quero defender o vandalismo. Mas detesto esse discurso de que ele invalida o movimento. Primeiro, porque ninguém tem sangue de barata para aguentar esperar a boa vontade do governo. Segundo, porque no Brasil parece que as coisas só funcionam quando a coisa fica feia, muito feia. E, por fim, porque, ainda bem, existe muito mais gente com boas intenções do que com más. Gente disposta a inibir esses atos depredatórios e a reparar os danos causados.

Toda ação tem uma reação. E a omissão é a mais irritante das ações.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Por que mesmo você é contra, hein?



Eu não consigo entender, realmente não consigo, as razões que algumas pessoas têm para serem contra os protestos. Não estou dizendo que essas pessoas não têm direito de ser contra, só não encontrei até agora nenhuma razão para isso.

Será que elas estão satisfeitas com o nosso governo? Talvez elas não vejam nenhuma razão em protestar contra o fato de gastarmos 40 bilhões em uma Copa do Mundo, enquanto outros países gastaram menos de um terço disso. Ou não veem nada de mais em escândalos como o mensalão. Às vezes, o ônibus que elas andam é vazio, tem ar condicionado, bancos intactos e passa sempre na hora; o lugar onde elas moram é seguro, elas podem caminhar tranquilamente a qualquer hora do dia ou da noite;  a escola pública perto da casa delas tem merenda, bons professores, instalações de primeira e um sistema de ensino exemplar; ou elas frequentam um hospital público com estrutura, médicos, leitos, medicamentos. Talvez elas acreditem que não existe nenhum problema em acabar com o poder de investigação do Ministério Público que, verdade seja dita, muitas vezes é mais eficiente do que a polícia; ou concordam em desalojar pessoas pobres de suas casas para limpar a área ao redor dos estádios.

Será que elas ainda acreditam que tudo não passa de um movimento partidário para derrubar o governo? Pode ser que elas não tenham entendido que isso tudo não tem nada a ver com partido, religião, gênero, orientação sexual, raça, time de futebol, ou qualquer tipo de segregação. Eu posso dizer porque eu estava lá, esse movimento não tem bandeira, não tem liderança, ele tem vontade. Apenas uma vontade imensa e reprimida por anos de lutar por um Brasil melhor. Essa luta tem a ver com uma nação insatisfeita com tanto problema, com tantos absurdos e com tanta inércia.

Será que elas só estão bravas com o vandalismo de alguns (poucos, repito, muito poucos)  manifestantes? Acho que elas não perceberam que a maioria esmagadora também não concorda com essas atitudes. Mas, infelizmente ainda não inventaram uma fórmula mágica para controlar uma multidão de 100 mil pessoas sem que nada seja danificado. Não existe revolução sem um preço e acredito, sinceramente, que o preço que estamos pagando ainda é muito baixo em comparação aos frutos que podemos colher. Não concordamos em quebrar, xingar ou depredar. Não concordamos com nenhum tipo de violência. Felizmente existem muito mais pessoas conscientes e pacíficas do que vândalos. E quem quiser uma prova disso, basta ver esse vídeo ou ler essa matéria.

Será que elas acham que isso tudo é contra a Copa, contra a seleção e só estraga a festa brasileira do futebol? De repente, elas não entenderam ainda que não temos nada, absolutamente nada contra a seleção brasileira. Que muitos de nós que fomos para as ruas, gostaríamos de estar no estádio torcendo pela nossa seleção também. Só não queremos ser patriotas apenas na Copa, queremos ser patriotas sempre. Não queremos ser coniventes com tantos gastos desnecessários com estádios enquanto nossa população ainda tem fome. Ainda amamos futebol, pelo menos grande parte de nós, mas não temos o que festejar, ele não está acima do nosso bem estar. Isso não tem nada a ver com o esporte, tem a ver com uma grande e urgente vontade de parar com tanta corrupção.

Ninguém é obrigado a ir para as ruas protestar, nem postar no Facebook, nem mesmo conversar sobre o assunto. Mas, confesso, para mim é muito difícil entender porque alguém consegue ser contra uma multidão de pessoas que está tentando melhorar as coisas para todo mundo, inclusive para quem está reclamando.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O país do swingue é o país da contradição




Por anos escutei as pessoas reclamarem da passividade do povo brasileiro. Escândalos atrás de escândalos e não fazemos nada para mudar. Entram eleições, saem eleições e os mesmos estão no poder. O povo não se mobiliza. O povo, essa entidade despersonalizada, sem nome, nem endereço. A geração dos nossos pais, sobreviventes à ditadura, sempre mostrando o quanto nós, jovens de hoje, somos coniventes com tudo, não nos mobilizamos, não saímos de frente do computador. Porque na França, no Egito, na Turquia, em Marte, lá sim eles sabem protestar, lá sim eles exigem seus direitos. Lá, o povo sabe reclamar.

Pois bem, o povo saiu da internet e foi para as ruas. Por causa de míseros R$ 0,20 a paciência chegou no limite, esgotou. Sim, o povo brasileiro, como o francês, aqueles que sabem protestar, resolveu colocar a cara a tapa. Mas esse mesmo povo, antes passivo e apático, virou bandido. Aqueles mesmos que acusavam o povo de inerte, agora acusam de baderna. Porque o povo brasileiro tem que protestar em silêncio, não pode atrapalhar sua volta pra casa no seu carro automático e com ar condicionado, não pode sujar a rua, nem quebrar vidros. Na França pode até virar ônibus, eles tem uma causa. Aqui são só R$ 0,20. E não justifica tudo isso por essa mixaria. Aliás, nem justifica esse bando de gente que nem transporte público usa, ir fazer protesto contra o aumento das passagens. Cada um com seus problemas, e o conceito de democracia é jogado pelo ralo.

Pior ainda, o povo escolheu uma péssima hora para resolver reagir; estragando a festa brasileira, a tão esperada e venerada Copa do Mundo no Brasil. Tudo errado, tudo errado. O povo brasileiro deveria mostrar para os gringos o quanto somos felizes, hospitaleiros e imbecis de acharmos normal gastar 33 bilhões com uma Copa do mundo e não termos hospitais.

O primeiro absurdo nessa história toda é jogar a culpa em cima do povo. Quem é esse povo? Esse povo não sou eu, você, o PM, seus filhos e todos que pagam impostos, elegem os governantes, são cidadãos? Não somos nós esse povo que não ia às ruas, não reclamava? E não somos nós esse mesmo povo que está com a paciência esgotada, que quer ver uma mudança urgente? Então porque essa mania de despersonalizar a culpa, ao invés de assumi-la? Ao invés de admitir que somos nós que não nos mobilizamos? Somos nós que aguentamos por anos escândalo atrás de escândalo, corrupção atrás de corrupção, injustiças, absurdos, abusos, dentre outras coisas. E somos nós que não fizemos nada para mudar isso. Portanto, não se esconda atrás do povo brasileiro, pois você é o povo brasileiro e somos todos culpados pelos governantes que temos, pelos problemas que temos, por essa nossa cultura do jeitinho que confunde malandragem com esperteza.

Acontece que nós, povo, não aguentamos mais ter que pagar caro por um transporte público que não funciona; ter que pagar escola particular e plano de saúde, por o que é público é de péssima qualidade; ter medo de sair na rua; ter estradas esburacadas e perigosas, só para citar alguns dos problemas. E somos nós, povo, que estamos indo para a rua protestar. Não é O POVO brasileiro, despersonalizado, somos nós, todos nós que pagamos nossos impostos e não vemos retorno, que queremos morar em um país melhor.

Portanto, não espere um protesto silencioso, ele não vai acontecer. Quebrar, depredar, estragar não são corretos. Mas ferir, prender injustamente, perseguir e espancar também não são. Morrer em hospitais, não ter cadeira nas salas de aula, passar fome, são menos ainda. E se for preciso pagar um preço para ter um país mais decente, teremos que pagar. Não haverá manifestação na calçada, que irá parar nos sinais e faixas de pedestre pra você passar. Você vai chegar atrasado para buscar seu filho, vai ouvir palavrões na rua, não vai conseguir assistir sua novela. Mas graças a esses baderneiros pode ser que o seu dinheiro seja melhor aplicado, que você possa deixar o carro em casa para usar o transporte público, que seu filho posso brincar na rua sem medo. Então, ou estaciona seu carro na esquina e vai para a rua, ou vai ler uma revista e não atrapalha quem está lutando por um país melhor para você e sua família.

Não espere que um trabalhador que fica mais de 8 horas por dia no trabalho, que pega 2 conduções e leva mais 2 ou 3 horas voltando para casa, tenha tempo para ir para a rua protestar. Ele tem que ir para casa dar atenção para o filho pequeno porque não pode pagar ninguém para cuidar ou, quem sabe, começar uma jornada dupla de trabalho, em casa ou em outro emprego. Isso se ele tiver alguma ideia do que está acontecendo, se ele tiver uma visão que o faça enxergar além do que a grande mídia mostra, se ele tiver um nível educacional e crítico que o permita avaliar as mudanças que estão acontecendo. Mas eu, você, seu filho, seus amigos, nós que não usamos transportem público, temos plano de saúde e estudamos nas melhores escolas do país; nós que não levamos nem meia hora do trabalho até em casa e podemos pagar alguém para ficar com nossos filhos por mais uma ou duas horas eventualmente; nós que estudamos, lemos, viajamos, temos acesso a cultura; nós podemos ir juntos às ruas reivindicar direitos que atingem a todos. Podemos gastar 2 ou 3 horas do nosso dia lutando por um lugar mais justo, mais digno para se viver. Lembre-se que para nós, estudar em uma universidade pública foi apenas obrigação para quem teve condição de ter um ensino privado de qualidade. Mas o filho do seu porteiro, que usa o transporte público lotado e péssimo para ir a uma faculdade privada e de qualidade duvidosa, não tem como ir para a rua protestar, porque provavelmente ele ainda trabalha para pagar a faculdade. Ou seja, obrigação dobrada para nós, privilegiados da classe média brasileira que ao invés de ajudarmos só reclamamos.

Por fim, não existe festa brasileira do futebol e cara bonita para a imprensa lá fora quando se gasta bilhões na construção de estádios que serão subaproveitados, enquanto a população se ferra. A FIFA é uma das instituições mais corruptas que existem, isso não é segredo para ninguém. Juntando isso ao governo brasileiro, historicamente ladrão, temos uma máfia formada. Então, não me venha falar de festa e sorrisos enquanto nossos hospitais não tem leito, não tem médicos, não tem medicamentos; enquanto nossas escolas não tem cadeiras, não tem professores, não tem merenda; enquanto nosso transporte público está lotado e sucateado; enquanto nós não pudermos andar nas ruas sem ter medo de bandido de verdade. Não venha me dizer que toda essa "baderna" é ruim para a imagem do país lá fora. Ruim para nós é ter policia batendo em estudante, gente morrendo em hospital por falta de atendimento, criança sem ter o que comer na escola.

Isso não é briga de partido, não é disputa entre vermelhos ou azuis, há tempos que essa divisão partidária no Brasil deixou de ter sentido. Também não é uma greve, não existe uma lista de reivindicações. Essa é a luta de 8 milhões de brasileiros por um país coerente, menos corrupto, mais preocupado com o bem estar da população. O Brasil resolveu mostrar a cara, dizer a que veio, mostrar ao mundo que cansamos do pão e do circo. A gente quer justiça. Não adianta "deixar para protestar nas urnas", estamos cansados de saber que nossas opções estão sempre entre o sujo e o mal lavado. Só nos resta ir para a rua, para a janela, para o Facebook, tanto faz, mas lutar com as armas que cada um tem. Lutar para que nossos filhos tenham orgulho de dizer que são brasileiros não por causa de uma seleção de futebol, mas porque vivem em um país que oferece condições dignas para sua população viver.